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ARTE

segunda-feira, 29 de junho de 2009

ANTÓNIO ALEIXO - ANTOLOGIA POÉTICA






António Aleixo nasceu em 18 de Fevereiro do ano de 1899, em Vila Real de Santo António. Filho de um tecelão, vai viver para Loulé, ainda criança. Aí aprende as primeiras letras e com apenas dez anos já se revela como improvisador, cantando as janeiras.
Com apenas treze anos, inicia-se no ofício do pai. Primeiro soldado, depois polícia em Faro, casa em Loulé e emigra para França. Retorna a Portugal e vende cautelas. Até ao internamento em Coimbra, no Sanatório dos Covões, torna-se conhecido, dando à estampa no ano de 1943 o seu primeiro livro.
Até 1949 mantém-se no Sanatório, regressando em princípios de Outubro, definitivamente ao Algarve.
Morre tísico no dia 16 de Novembro de 1949.

António Aleixo é um poeta popular, sabe ler e escrever, mas não é propriamente um intelectual. E ainda bem que o não é, porque se o fosse, provavelmente nada saberia da vida e dos homens.
Cauteleiro e guardador de rebanhos, homem pobre e sofrido, poeta e filósofo que soube abrir o Grande Livro da Vida, é perspicaz, espontâneo, irónico, sarcástico... Poeta sofrido, sem conhecer ódio, poeta do sim a uma existência madrasta, do sim à Morte, poeta da verdade que só os génios e os insubmissos exprimem com liberdade.
A sua escola é a eterna Universidade do Quotidiano, que apenas a alguns eleitos é permitido frequentar.
O seu saber e engenho provoca uma improvisação espontânea, de lucidez instantânea.

Não sou homem dado a homenagens, e, se algum dia as merecesse – que não as mereço, nem merecerei – nunca as aceitaria. Mas, homenagear Aleixo, é homenagear o sofrimento, a dor, o génio e a desventura. É homenagear a sageza, virtude que se foi extinguindo neste mundo de miséria moral, de incompetentes, ladrões, aduladores e de “doutores analfabetos”.
Aleixo não é doutor, não é analfabeto, mas é um catedrático da Vida, que não os papagaios engravatados que nos rodeiam e botam discurso e “faladura”, assemelhando-se à serradura quase imprestável que queimamos nos fogões nas noites de álgida invernia.

Que no espelho do livro do poeta, “Este Livro Que Vos Deixo”, cada um se veja e reveja e, outrossim, a pútrida sociedade que amamenta.


Estejas lá onde estiveres, Bem Hajas, Irmão!


Zé Maria Alves










Peço às altas competências
Perdão, porque mal sei ler,
Para aquelas deficiências
Que os meus versos possam ter.



Se pedir, peço cantando,
Sou mais atendido assim;
Porque, se pedir chorando,
Ninguém tem pena de mim.



Por de Deus ter recebido
Tantas provas de bondade,
Já lhe tenho até pedido
A morte por caridade.



Eu não tenho vistas largas,
Nem grande sabedoria,
Mas dão-me as horas amargas
Lições de filosofia.



Fala quanto te apeteça,
Mas desculpa que eu te diga
Que te falta na cabeça
O que te sobra em barriga.



Vem da serra um infeliz
Vender sêmea por farinha;
Passado tempo já diz:
- Esta rua é toda minha.



Uma mosca sem valor
Poisa, com a mesma alegria,
Na careca de um doutor
Como em qualquer porcaria.



Deixam-me sempre confuso
As tuas palavras boas,
Por não te ver fazer uso
Dessa moral que apregoas.



São parvos, não rias deles,
Deixa-os ser, que não são sós;
Às vezes rimos daqueles
Que valem mais do que nós.



Com o mundo pouco te importas
Porque julgas ver direito.
Como há-de ver coisas tortas
Quem só vê em seu proveito?



Descreio dos que me apontem
Uma sociedade sã:
Isto é hoje o que foi ontem
E o que há-de ser amanhã.



Vós que lá do vosso império
Prometeis um mundo novo,
Calai-vos, que pode o povo
Querer um mundo novo a sério.



Há luta por mil doutrinas.
Se querem que o mundo ande
Façam das mil pequeninas
Uma só doutrina grande.



Que importa perder a vida
Em luta contra a traição,
Se a Razão, mesmo vencida,
Não deixa de ser Razão?



Casado que arrasta a asa
À mulher deste e daquele,
Merece que tenha em casa
Outro homem em lugar dele.



Poisa sobre qualquer coisa
Um parasita, a brincar;
Se o não matam, quando poisa,
Já pode ele então matar.



De te ver fiquei repeso,
Em vez de ganhar, perdi;
Quis prender-te, fiquei preso,
E não sei se te prendi.



Eu não sei porque razão
Certos homens, a meu ver,
Quanto mais pequenos são
Maiores querem parecer.



Vemos gente bem vestida,
No aspecto desassombrada;
São tudo ilusões da vida,
Tudo é miséria dourada.



É fácil a qualquer cão
Tirar cordeiros da relva;
Tirar a presa ao leão
É difícil nesta selva.



A vida na grande terra
Corrompe a humanidade.
Entre a cidade e a serra
Prefiro a serra à cidade.



Deus vive dentro de nós;
Quando queremos fazer mal
Ouvimos a sua voz
Dizer-nos: - Não faças tal.



Para a mentira ser segura
E atingir profundidade,
Tem que trazer à mistura
Qualquer coisa de verdade.



Engraxadores sem caixa
Há aos centos na cidade,
Que só usam da tal graxa
Que envenena a sociedade.



Para triunfares depressa,
Cala contigo o que vejas
E finge que não te interessa
Aquilo que mais desejas.



Se o hábito faz o monge
E o mundo quer-se iludido,
Que dirá quem vê de longe
Um gatuno bem vestido?



Foste mordido como eles,
Sofreste, e sem que o recordes,
Agora mordes naqueles
Que sofrem quando lhes mordes.



Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
Que, sem parecer o que são,
São aquilo que eu pareço.



Esta gente tão sincera,
Cheia de graça e encanto,
De um santo faz uma fera
E faz de uma fera um santo.



Tu és feliz, vives na alta,
E eu de rastos como a cobra.
Porquê? Porque tens de sobra
O pão que a tantos faz falta.



Direi mal, daqui não saio,
Apenas canto o que é meu,
Não sou como o papagaio
Que só diz o que aprendeu.



Quantas sedas que aí vão,
Quantos brancos colarinhos,
São pedacinhos de pão
Roubados aos pobrezinhos!



Queremos ver sempre à distância
O que não está descoberto,
Sem ligarmos importância
Ao que está à vista e perto.



És um rapaz instruído,
És um doutor; em resumo:
És um limão, que espremido,
Não dá caroços nem sumo.



Crês que ser pobre é não ter
Pão alvo ou carne na mesa?
Mas é pior não saber
Suportar essa pobreza!



A ninguém faltava o pão,
Se este dever se cumprisse:
- Ganharmos em relação
Com o que se produzisse.



O homem sonha acordado;
Sonhando a vida percorre...
E desse sonho dourado
Só acorda quando morre!



Quantas, quantas infelizes
Deixam de ser virtuosas...
E depois são seus juizes
Os que as fazem criminosas!...



Sem que o discurso eu pedisse,
Ele falou; e eu escutei.
Gostei do que ele não disse;
Do que disse não gostei.



Tu, que tanto prometeste
Enquanto nada podias,
Hoje que podes – esqueceste
Tudo quanto prometias...



Diz que viver é sofrer...
Concordo. Mas não compreendo
Que ninguém ouse dizer
Quanto se aprende sofrendo!



Vinho que vai para vinagre
Não retrocede o caminho;
Só por obra de milagre,
Pode de novo ser vinho.



Tanto da vida conheço
Que, ao ver o mundo tão torto,
Às vezes quando adormeço,
Desejava acordar morto.



Não sou esperto nem bruto,
Nem bem nem mal educado:
Sou simplesmente o produto
Do meio em que fui criado.



Se no sentir fui distinto,
Talvez, por essa razão,
Agora levo e não sinto,
Os pontapés que me dão...



Nomes feios há mais de um...
Mas calcula a tua classe,
Que não conheço nenhum
Que inda ninguém te chamasse!



Só quando sinceramente
Sentimos a dor de alguém,
Podemos descrever bem
A mágoa que esse alguém sente.



Até nas quadras que faço
Aos podres que o mundo tem,
Sinto que sou um pedaço
Do mesmo podre também.



Ser artista é ser alguém!
Que bonito é ser artista...
Ver as coisas mais além
Do que alcança a nossa vista!



A arte é força imanente,
Não se ensina, não se aprende,
Não se compra, não se vende,
Nasce e morre com a gente.



A arte é dom de quem cria;
Portanto não é artista
Aquele que só copia
As coisas que tem à vista.



Se o meu livro se consome,
Pode-me cobrir de glória,
Mas, depois, a minha história
Dirá que morri de fome.



Queria que o mundo soubesse
Que a dor que tortura a vida
É quase sempre sentida
Por quem menos a merece.



Oh! Quem me dera, sozinho,
E em quatro versos somente,
Contar ao mundo inteirinho
A mágoa de toda a gente.



Quem canta por conta sua
Quer ser, com muita razão,
Antes pardal, cá na rua,
Que rouxinol na prisão.



Não sei o que de mim pensam
Quando me vêem chorar;
Mas quero que se convençam
Que a dor também faz cantar.



Fiz do meu estro uma vara
Para medir a verdade
E dar com ela na cara
Do cinismo e da vaidade.



Se tudo me foi vedado,
Se vivi de tudo à míngua,
Deixai que vos mostre a língua
Com o freio bem cortado.



Se umas quadras são conselhos
Que vos dou de boa fé;
Outras são finos espelhos
Onde o leitor vê quem é.



À carta que me mandaste,
Em troca à minha, que leste,
Preferia o que pensaste
Àquilo que me escreveste.



Contigo em contradição
Pode estar um grande amigo;
Duvida mais dos que estão
Sempre de acordo contigo.



Fala!... Não te faças branco.
Não compreendes que, de resto,
Vale mais ser rude e franco
Que falsamente modesto?



Para que te não iludas
Com amigos, pensa nisto:
Foi com um beijo que Judas
Levou à cruz Jesus Cristo.



Para não fazeres ofensas
E teres dias felizes,
Não digas tudo o que pensas,
Mas pensa tudo o que dizes.



Quando algum bem tu fizeres,
Não o digas a ninguém,
Repara que, se o disseres,
Fazes mais mal do que bem.



Quando te vês mal, e dizes
Que preferias a morte,
Pensa que outros menos felizes
Invejam a tua sorte.



Nas tuas horas mais tristes,
De mágoas e desenganos,
Pensa que já não existes,
Que morreste há muitos anos.



A sociedade é um espelho
Que Deus, para os homens criou
- Onde só depois de velho
Comecei a ver quem sou.



Jesus disse que se amassem
Aos que cristãos se proclamam;
Não disse que se matassem,
E eles matam-se e não se amam.



São João, reparem nisto,
Teve este grande condão:
Ao baptizar Jesus Cristo
Foi quem fez Cristo cristão.



Tu não vais à procissão
Para rezar à Virgem-Mãe,
Vais para aqueles que lá vão
Verem que tu vais também.



Tu que queres ser alguém
Pelo que julgas valer
Não perdoas que ninguém
Seja o que tu queres ser.



Atrás dum morto, em conjunto,
Vão sem ninguém lhes dizer,
Que não vão pelo defunto
- Vão para a família saber.



Da guerra os grandes culpados,
Que espalham a dor na terra,
São os menos acusados
Como culpados da guerra.



O oiro, o cobre e a prata,
Que correm pelo mundo fora,
Servem sempre de arreata
Para levar burros à nora.



Que o mundo está mal, dizemos,
E vai de mal a pior;
E, afinal, nada fazemos
Para que ele seja melhor.



Só quando a hipocrisia
Cair do seu pedestal,
Nascerá, dia após dia,
Um sol para todos igual.



Ao ver uma triste cena
Quantos, sem vergonha alguma,
Ficam dizendo: - que pena!
... Sem terem pena nenhuma.

Como és vil, humanidade!...
Não olhas para as desventuras:
As chagas da sociedade,
Podes curar, e não curas.



Como a morte é um segredo,
Quem sabe lá se, por sorte,
Os mortos têm mais medo
Da vida que nós da morte?



Embora os meus olhos sejam
Os mais pequenos do mundo,
O que importa é que eles vejam
O que os homens são no fundo.



Goza mais um desgraçado
Num dia de felicidade,
Do que qualquer abastado
Gozando uma eternidade.



Não vês? Onde um pardal poisa,
Poisam todos os pardais;
Nós somos a mesma coisa:
Onde um vai, vão os demais.



Tu já viste a «poesia»
Que há numa casa sem ceia,
Nem azeite na candeia,
Nem luz, se morre a do dia?...



Embora o nosso amor fosse
Doce, tinha que acabar;
O mel por ser muito doce
É que nos faz enjoar.



A começar pelo «urso»
De Coimbra, a estudantada,
Só quando acaba o curso,
Sabe que não sabe nada.



Alheio ao significado,
Diz o povo, e com razão,
Quando ouve um grande aldrabão:
- Dava um bom advogado.



Foste beijar o menino,
Quando, afinal, eu vi bem
Que beijaste o pequenino
Porque gostavas da mãe.



Quem só veste o que lhe dão
Vive sempre num inferno:
Traz sobretudo no verão
E anda em camisa no inverno.



Poeta, não, camarada,
Eu sou também cauteleiro;
Ser poeta não dá nada
Vender jogo dá dinheiro.



Nem os sábios... nem os poetas
Sabem fazer, de bom grado,
Aldrabices mais completas
Do que um bom advogado.



Não há nenhum milionário
Que seja feliz como eu:
Tenho como secretário
Um professor de liceu.



Riem d´outras com desdém
Certas damas bem vestidas;
Quantas para vestir bem,
Se despem às escondidas.



Doutores nobres e ricos,
Homens de grandes valores!...
As criadas – aos penicos,
Também lhes chamam «doutores»!



Porque as pequenas se encostem,
Não vos deve causar espanto...
Eu não estranho que elas gostem
Do que nós gostamos tanto.



Onde passas deixas rasto;
Qualquer homem te seduz.
- O teu marido é padrasto
Dos filhos que dás à luz.



Certas viúvas discretas,
De luto pesado em cima,
Lembram cachos de uvas pretas,
A pedir outra vindima.



A rica tem nome fino,
A pobre tem nome grosso;
A rica teve um menino,
A pobre pariu um moço!



Quantos moços elegantes
Vestem com todo o esmero!...
No vestir são uns gigantes,
No saber não valem zero.



Condecoro o Presidente...
E sabem porque razões?...
- Por ter posto a tanta gente
Tantas condecorações.



Ao pé de ti fico mudo,
Fitando esse teu olhar:
Quando os olhos dizem tudo
Para que há-de a boca falar?!



Qual é a mulher mais bela,
De formas esculturais?
A mais bela é sempre aquela
De quem nós gostamos mais.



Sem ter chicote nem vara
Manda-me a minha razão
Atirar versos à cara
Dos que me roubam o pão.



Nos versos que se improvisem,
Os poetas sabem ler,
Para além do que eles dizem,
Tudo o que querem dizer.



Fui polícia, fui soldado,
Estive fora da Nação...
Vendo jogo, guardo gado
- Só me falta ser ladrão!



Vim ao mundo sem saber
Que vinha a ser o que sou;
Agora morro sem querer
E sem saber para onde vou.



Não sei se sei: sou dos tais
A quem pouco saber cabe;
Mas sei que é saber de mais,
A gente saber que sabe!



«Vá mais uma» - oiço dizer...
Olhem que isto até tem graça:
A todos ter de as fazer,
E a mim não há quem mas faça!



E cada quadra pedida
Rende muita gargalhada.
Há muita palma batida,
Mas lá dinheiro é que nada!



Sou um cauteleiro em forte,
Para vender jogo me empenho,
Se um dia vender a sorte,
Vendo aquilo que não tenho.



Na morte há tanta alegria,
Tanto desgosto e prazer,
Como os que a gente sentia
Anos antes de nascer.



Pensei uma vez assim:
«Paciência... tinha que ser...
Cuspi sangue, foi o fim...
Acabou-se, vou morrer!»



Os amigos, afastados,
Diziam-me sem me olhar,
Que não me vinham falar,
Para não serem contagiados.



Ao ver esses fugitivos,
Dizia, com desconforto:
«Morri, antes de ser morto,
Para aqueles que vejo vivos.»



E quando os via afastar,
Sentia, com mágoa infinda,
Vontade de lhes gritar:
«Não fujam, sou vivo ainda!»



Creio em Deus Todo-Poderoso,
Mas não vou à confissão,
Porque não sou mentiroso
Como aqueles que lá vão.



Sou um dos membros malditos
Dessa falsa sociedade
Que, baseada nos mitos,
Pode roubar à vontade.



Rouba muito que, de resto,
Terás um bom advogado
Que prova que és mais honesto
Que propriamente o roubado.



Se já sofreste, não chores,
Que a vida passa depressa...
Vamos ter dias melhores
E o passado pouco interessa.



Para que tentas prender
Um pensador de talento?
Não vês que vais dar sem querer,
Liberdade ao pensamento.



Para veres o que merecias
Quando tu me fazes mal,
Pensa só no que farias
A quem te fizesse tal.



Se andas comigo à pancada,
A justiça comprarás...
Arranjas uma embrulhada
Que vou preso e tu não vás.



Tu que vives na grandeza,
Se calçasses e vestisses
Daquilo que produzisses,
Andavas nu, com certeza.



Se dás para que o mundo veja,
Isso não é caridade
Como pretendes que seja
É fazer bem por vaidade!



Se cá voltasse Jesus,
O mártir, filho do homem,
Escorraçava os que comem
À sombra da sua cruz.



Numa ambição desmedida
A gente grande quer ter
Dois céus: - um cá nesta vida,
Outro depois de morrer.



Quem trabalha e mata a fome
Não come o pão de ninguém;
mas quem não trabalhe e come,
Come sempre o pão de alguém!



Entre grandes e pequenos
Ficávamos quase iguais,
Dando a uns um pouco menos
E a outros um pouco mais.



A fartura ao pé da fome,
Raramente se dá bem:
Quase sempre quem tem come
À custa de quem não tem!



Neste mundo, onde sobejam
Os homens de pouco siso,
Talvez os malucos sejam
Os que têm mais juízo.



Há tantos burros mandando
Em homens de inteligência,
Que às vezes fico pensando
Que a burrice é uma ciência!



A pedra branca, polida,
Que mói o trigo, indiferente,
É como a roda da vida
Que mói a vida da gente.



Não faço juízo algum
Vivo entre mil confusões
Se o Deus do mundo é só um
Porque há tantas religiões?



Nós não devemos cantar
A um deus cheio de encantos
Que se deixa utilizar
Para bem duns e mal de tantos.



Esta mascarada enorme
Com que o mundo nos aldraba,
Dura enquanto o povo dorme,
Quando ele acordar, acaba.



Prometem ao Zé Povinho
Liberdade, Lar e Pão...
Como se o mundo inteirinho
Não soubesse o que eles são.



Convém manter o Zé bem distraído
Enquanto ele se entrega à diversão,
Não pode ver por quantos é comido
E nem se importa que o comam, ou não.



Esperar é sempre um inferno;
Coitado de quem espera
Pelo «Socorro do Inverno»
- Que só vem na Primavera!






Vós podeis chamar-me louco;
Democrata; socialista...
E comunista também.
Que sou de tudo isso um pouco,
Pois sou uma coisa mista
Do bom que tudo isso tem!





MOTE

Já lá foi preso o ladrão
Que em toda a parte aparecia;
Contam-se mais de um milhão
De roubos que ele fazia.

GLOSAS

Meus senhores, vão ouvir
A história do quadrilheiro
Manuel Domingos Louzeiro,
Que foi a pena cumprir,
Enquanto alguém de Salir,
Num primor de descrição,
Lhe chama até «Lampião»;
Mas, salirenses honrados,
Podeis dormir descansados,
Já lá foi preso o ladrão.

Pelas coisas que o povo diz,
O tal Domingos tem sido
Para uns, um terrível bandido,
Para outros, grande infeliz.
Mas eu, sem querer ser juiz,
Vi que ele se despedia
Da mulher com quem vivia
Numa amizade sincera
E não vi nele a tal fera
Que em toda a parte aparecia.

Desse rei dos criminosos,
Direi, aos que o conheceram:
Poucos crimes apareceram
E poucos são os queixosos;
Apenas alguns medrosos
Terrível fama lhe dão;
Para a justiça só são
Os seus crimes dois ou três,
Mas coisas que ele não fez
Contam-se mais de um milhão.

Por alguns sítios passava,
Onde há só gente honradinha,
Que roubava à vontadinha
E que ninguém acusava;
Tudo Domingos pagava,
E ele às vezes nem sabia
Que à sua sombra vivia
Gente que passa por justa,
Fazendo crimes à custa
Dos roubos que ele fazia.


***



Pensei uma vez assim:
«Paciência... tinha que ser...
Cuspi sangue, foi o fim...
Acabou-se, vou morrer!»



Tuberculoso!... Mas que triste sorte!
Podia suicidar-me, mas não quero
Que o mundo diga que me desespero
E que me mato por ter medo à morte...






Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
Que, sem parecer o que são,
São aquilo que eu pareço.


E tantos são, amigo Aleixo...






JOSÉ MARIA ALVES


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